15.9.06

Secretária Eletrônica

Ricardo acordou tarde. Olhos cansados de olhar e não ver preferiram ficar no escuro. O som da rua não incomodava. Ainda. Vinha. Primeiro o cachorro da vizinha latindo lá longe no fundo do corredor. Uma. Duas. Três vezes. Parecia preparação. Ganhou o corredor a distância encurtou encurtando o latido aumentando o cachorro correndo latindo crescendo as patas sobre a cama um latido no ouvido. Fez força para que se mantivessem cerradas as pálpebras. Por isso não via. Já ouvia, contudo, todo o som da rua. Uma buzina aqui, outra acolá, uma sirene se aproximando vindo da rua de cima desce a ladeira invade o quarto e passa. E se afasta. Vai longe. Se esconde. Se apaga. Ele se concentra tentando relaxar e inspira profundamente. Prende o ar. Está pronto para suspirar. Táratátá o tempo não pára uma britadeira que invade o seu quarto quer suspirar os olhos fechados cerrados trancados esquece o suspiro e quer gritar!!! Gritou. Sentiu-se aliviado. Logo a lembrança de Ana se instalou. Mesmo sem querer olhar, olhou. A imagem dela se impôs. Incapaz de não olhar, preferiu não ver. Três respirações profundas e abriria os olhos. Um... dois... três... O canto do bem-te-vi atravessou a janela como se ela não fosse. Chorou. Copiosamente. Trinta minutos mais tarde já era tarde demais. Não quis saber as horas até tocar o telefone. "Bom dia! Você tem uma nova mensagem na sua secretária digital. Para ouvir sua mensagem aperte a tecla estrela; para desligar, digite seis". O coração disparou. Olhou em volta como procurasse coragem para tentar qualquer coisa diferente de. Apertou a tecla estrela. "Primeira nova mensagem. Mensagem recebida hoje às três horas e quarenta e cinco minutos". Um barulho de agulha riscando o vinil.

"Primeiro você me azucrina, me entorta a cabeça
Me bota na boca um gosto amargo de fel
Depois vem chorando desculpas, assim meio pedindo
Querendo ganhar um bocado de mel
Não vê que então eu me rasgo, engasgo, engulo
Reflito e estendo a mão
E assim nossa vida é um rio secando
As pedras cortando e eu vou perguntando: até quando?

São tantas coisinhas miúdas, roendo, comendo
Arrasando aos poucos com o nosso ideal
São frases perdidas num mundo de gritos e gestos
Num jogo de culpa que faz tanto mal
Não quero a razão pois eu sei o quanto estou errada
O quanto já fiz destruir
Só sinto no ar o momento em que o copo está cheio
E que já não dá mais pra engolir

Veja bem, nosso caso é uma porta entreaberta
Eu busquei a palavra mais certa
Vê se entende o meu grito de alerta
Veja bem, é o amor agitando meu coração
Há um lado carente dizendo que sim
E essa vida da gente gritando que não"

Era um "Grito de Alerta" interpretado por Maria Bethânia...

Um comentário:

Anônimo disse...

Buenas noches, vim aqui escutar alguma música e esta caiu mais que bem. Linda, na voz de Gonzaguinha também. Des-Encontros. Mas tem um som lá dentro, bem no fundo, à procura de alguma verdade. Quem sabe rouco, mudo ou gasto?
Sei lá. E tem o 'Desenredo' com Nana Caymmi, belo, belo!...
saudações fraternas,
Palena