14.10.10

ver o peixe

Deformação foi a palavra que encontrei para o que passou no restaurante universitário. Receio que não é, ainda, a melhor palavra. Em todo caso, foi assim que está acontecendo. Não é muito diferente do que acontece todos os dias. Acontece que parei para olhar. Foi no restaurante central. Serviam peixe. Multiplicaram o peixe. Não consegui entender como conseguiram tanto peixe. Carne branca por todos os lados. Todos mastigavam aquela carne branca. Eu mastigava. Olhava ao redor e via centenas de palavras voando por todos os lados. As vozes em desarmonia formavam um zumbido que já não sabia se eram vozes ou as moscas no teto. Estávamos cobertos por um teto de moscas. Não pude entender sua presença. O peixe tinha um cheiro bom. Demais. Tudo ficou demais. A cada bocado que eu mastigava era irresistível o impulso de olhar em volta. E as pessoas, a carne branca, as moscas, a mastigação e as palavras eram o inverso de um mantra, eram um mantra invertido. Obsessivo. O rapaz à minha esquerda levava um bocado à boca e ficava mastigando e olhando a comida no prato e mastigando e parecia contar quantas vezes mastigava aquele bocado. Outro bocado e mastigando e olhando a comida no prato e mastigando e contando quantas vezes mastigava outro bocado. Não deve ter conseguido terminar de comer. Como não consegui digerir o que acabei de ver. O rapaz à minha direita é canhoto. Leva a comida à boca e coça a mão direita enquanto mastiga. Para de coçar, pega outro bocado, volta a coçar a mão direita e não sei como não se feriu ainda. Eu mastigava olhando em volta e parava para olhar a comida e mastigava olhando em volta e este coçava a mão direita e aquele contava quantas vezes mastigava olhando para a comida no prato. Acabei de comer e respirei fundo, suspirei com alívio e vários vaga-lumes haviam substituído as moscas. Eram coloridos, não me pergunte como, eram coloridos. Preciso sair daqui. Preciso sair daqui, preciso sair daqui. Caminhei saciado e ansioso para o pátio, respirar, respirar, respirar. Sempre encontrei dois ou três cachorros na saída do restaurante. Dia estranho. Os cachorros deram lugar aos gatos. Vários. Pude contar trinta e quatro gatos. Percebi que havia alguns nos galhos das árvores. Nessa hora eu penso que seria um bom momento para uma daquelas frases brilhantes que tornam determinados textos inesquecíveis – ou que salvam textos horríveis como este. Nenhuma frase brilhante veio à mente. Nenhuma palavra redentora. Nada. Tentei escapar das palavras, mas não foi possível. Elas me seguiram até o banheiro. Era simples, era uma questão de higiene. Queria apenas escovar os dentes. Nenhuma palavra se dispôs a salvar minha pele. Tinha um cara escovando os dentes. Parecia que estava terminando, como esse texto. Deixei minha mochila no balcão, mijei, lavei as mãos e o cara escovava os dentes. Era obsessivo. Olhava os dentes no espelho, escovava um pouco, lavava a boca, voltava a olhar através do espelho. Peguei minha escova, um pouco de creme dental, comecei a escovar meus dentes e de repente ele lavou a boca, parecia que ia embora. Pegou mais creme dental e recomeçou. Pensei, tudo bem, o cara só tá preocupado com os dentes. Não sei como não se machucava. De repente me vi acelerando a escovação, comecei a ficar preocupado. Ele parou, cuspiu, olhou os dentes, recomeçou a escovação. Terminei de escovar os dentes e nada se alterou. Saí do banheiro e o cara ficou lá olhando os dentes, lavando a boca, mais creme dental, escova escova escova, lava a boca, olha os dentes. Eles eram brilhantes. Eram brancos como as luzes da sala de estudo. Não sei o que aconteceu primeiro, se a tela do computador me hipnotizou, se foram as luzes da sala de estudo que se derramavam sobre as mesas vazias. As mesas vazias não me diziam nada, mas as palavras conversavam animadamente sobre elas. Algumas competiam para, quem sabe, aparecer mais vezes. Às vezes, um grito interrompia a conversação. Um ruído engasgado de espinha de peixe me trouxe de volta. O problema agora é controlar os dedos. O teclado é irresistível. Parece que estou olhando à minha volta. Parece que estou tocando um espelho.

Um comentário:

juliana amato disse...

o estranho falou: "isso me parece familiar..."